Há considerável tempo, nesta minha coluna, procurei chamar a atenção para a indevida utilização do IDPJ no lugar do ajuizamento da denominada ação pauliana (Desconsideração da personalidade não é sucedâneo da ação pauliana).

Como é sabido, para reprimir a fraude contra credores, o ordenamento jurídico brasileiro admite, no artigo 158 e seguintes do Código Civil, a declaração de ineficácia do negócio ou negócios que acarretaram a insolvência do devedor. O meio processual para atingir esse objetivo é a denominada ação pauliana (também chamada de revocatória), a ser ajuizada pelo credor lesado contra o devedor que alienou seus bens, levando-o à insolvência.

O prazo decadencial para o ajuizamento dessa demanda, a teor do disposto no artigo 178, inciso II, do Código Civil, é de quatro anos, a contar da data do registro do título de aquisição. O credor demandante tem o ônus de provar a precedência do crédito e o consilium fraudis entre o devedor e um terceiro, com o deliberado intuito de cometer o ato fraudulento. Este, na verdade, pode ser efetivado por inúmeras formas, como, por exemplo, transmissão gratuita de bens, contrato oneroso, renúncia à herança e ainda outras tantas registradas nos repertórios de jurisprudência.

É certo que a ação pauliana — clássico instrumento de tutela jurisdicional — em nada se confunde com a técnica da desconsideração da personalidade jurídica.

Não obstante, de modo cada vez mais frequente, a nossa praxe forense evidencia o recurso ao IDPJ, na tentativa de obter a integral satisfação de créditos inadimplidos. Com efeito, a lei autoriza o órgão jurisdicional ignorar a aparente autonomia patrimonial da pessoa jurídica (ou da pessoa física, na hipótese de desconsideração inversa), para obstar a utilização desta com o escopo deliberado de fraudar credores.

No entanto, torna-se necessário ressaltar que a incidência desta fictio iuris somente se dará quando restar amplamente comprovada a ocorrência de distorção da realidade negocial.

Assim, não será suficiente a simples insolvência da sociedade para que seja ignorada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Na verdade, o credor que pretende a “desconsideração” tem o ônus de provar o conluio perpetrado pelos administradores da empresa. Caso o credor não produza prova da fraude, suportará o dano da insolvência da sociedade devedora, visto que serão mantidas as regras de limitação da responsabilidade dos sócios, bem como de outra sociedade. Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica somente será autorizada pelo Poder Judiciário quando for verificada de forma incontestável a ocorrência de ato fraudulento por parte dos administradores da sociedade; caso contrário, será mantida a separação do patrimônio dos sócios e da sociedade.

Importa observar que a literatura especializada, de um modo geral, preconiza que a admissibilidade da incidência da chamada disregard doctrine está condicionada à verificação do abuso da pessoa jurídica, demarcado pela fraude manifesta ou pela confusão patrimonial entre sociedade e sócios, ou mesmo entre sociedades.

Embora com finalidade assemelhada, o pleito de desconsideração da personalidade jurídica não pode se sobrepor ou mesmo ser sucedâneo da ação pauliana, em particular, quando transcorrido o prazo de quatro anos computado da data da realização do negócio suspeito!

Como explica, a propósito, Marina Amari (Incidente de desconsideração da PJ não é sucedâneo processual da ação pauliana), “enquanto a desconsideração exige ligação entre sócio ou administrador e a sociedade, a fraude contra credores paira sobre o negócio jurídico independentemente de qualquer relação societária. Um dos pontos mais relevantes relativo às diferenciações entre um instituto e outro diz respeito ao prazo para exercício do direito. O artigo 178, inciso II, do Código Civil, prevê que o direito à anulação do vício decai em quatro anos, contados do dia em que celebrado o negócio jurídico. Trata-se de prazo decadencial que conduz à perda do direito”.

Não se pretende afirmar que o credor tenha de requerer a instauração do IDPJ no prazo decadencial da ação pauliana. Essa posição ficou superada no polêmico precedente cujo voto condutor é da lavra do ministro Luis Felipe Salomão, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial nº 1.180.714-RJ, pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Todavia, nesse importante acórdão, foi feita a ressalva de que a ação pauliana possui requisitos absolutamente distintos daqueles exigidos para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica, textual:

“A partir dessas características já se conclui que a desconsideração da personalidade jurídica não se assemelha à ação revocatória falencial ou à ação pauliana, seja em suas causas justificadoras, seja em suas consequências.
A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de determinado negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato praticado em fraude a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de interditos restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os bens necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições (artigos 129 e 130 da Lei n. 11.101/05 e artigo 165 do Código Civil de 2002).
A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, não consubstancia extinção da pessoa jurídica, tampouco anulação/revogação de atos específicos praticados por ela, ainda que verificados os vícios a que faz alusão o artigo 50 do Código Civil.
Em realidade, cuida-se de superação de uma ficção jurídica, que é a empresa, sob cujo véu se esconde a pessoa natural do sócio.”

Este era, salvo engano, o único precedente da referida Corte de Justiça federal que enfrentou tal questão, tecendo a distinção entre a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica e aquela que propicia o ajuizamento da ação pauliana.

Contudo, a jurisprudência dos nossos tribunais continuou se esquecendo dos casos de cabimento da ação pauliana, para autorizar tout court a desconsideração em detrimento do patrimônio de terceiros, que passam então a responder pelo débito.

Cabimento

Como a esperança é a última que morre, anoto que, mais recentemente, a 4ª Turma do STJ, num excelente acórdão prolatado em abril de 2025, por maioria, no julgamento do Recurso Especial nº 1.792.271/SP, da relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, delimitou o cabimento, de um lado, do IDPJ, e de outro, o da ação pauliana.

Registro que o aspecto mais interessante desse julgado se consubstancia no reconhecimento da nulidade insanável, por ofensa ao devido processo legal, da utilização do IDPJ, quando a situação concreta exigia o ajuizamento da ação pauliana.

É dizer: o IDPJ não pode ser considerado sucedâneo da ação pauliana!

Eis a síntese da fundamentação deste precioso precedente:

“O instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no artigo 50 do CC/2002 – em sua antiga e atual redação – destina-se a afastar a separação entre o patrimônio do sócio e da respectiva pessoa jurídica com o propósito de combater fraudes, desvios e confusão patrimonial, e permite a responsabilização: (i) de sócios por obrigações das respectivas empresas, (ii) de empresas por obrigações de sócios e (iii) de empresas por obrigações de outras pessoas jurídicas do mesmo grupo econômico.
Inexiste previsão legal ou viabilidade de interpretação ampliativa com o propósito de aplicar a desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar terceiros que não têm vínculo jurídico com as sociedades atingidas, ainda que se cogite da ocorrência de confusão ou desvio patrimonial, a ensejar suposta fraude contra credores.
O reconhecimento da fraude contra credores pressupõe o ajuizamento de ação pauliana (CC/2002, artigo 161), afigurando-se descabido declará-la em caráter incidental, no bojo de feito executivo e com amparo em normas jurídicas que disciplinam instituto diverso, somente concebido para afastar, de modo excepcional e em circunstâncias específicas, a proteção legal e a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios. Os requisitos e o procedimento para avaliar o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica não se confundem com as questões que são objeto de demanda na qual se decide sobre a fraude contra credores.
No âmbito da ação pauliana, ajuizada com suporte em causa de pedir específica e pedido expresso para se reconhecer a ineficácia da alienação, o credor deve demonstrar o preenchimento dos requisitos legais para configurar a fraude, quais sejam o eventus damni, o consilium fraudis (ou scientia fraudis), e, além disso, a anterioridade da dívida, na medida em que o artigo 158, parágrafo 2º, do CC/2002 dispõe que: ‘só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles’.
Quanto aos recorrentes, o Tribunal de origem admitiu fossem atingidos pela desconsideração tão somente pelo fato de que seus pais, sócios nas empresas do grupo econômico e atingidos pela desconsideração clássica da personalidade jurídica, realizaram doações de imóveis e em dinheiro aos referidos filhos, limitando a responsabilidade dos recorrentes aos bens recebidos em doação ou adquiridos com dinheiro doado por seus pais em data posterior ao ‘saque do título exequendo’.
Portanto, embora tenha afirmado que estava desconsiderando a personalidade jurídica das empresas envolvidas, no que se refere aos recorrentes, o TJSP em verdade reconheceu a ocorrência de fraude contra credores, todavia sem que observado o procedimento previsto em lei, o que viola o due process of law…’.
Este irrepreensível acórdão vai, aos poucos, consolidando-se como relevante paradigma nos domínios do Superior Tribunal de Justiça, como se infere de recentíssima decisão monocrática da lavra do ministro Raul Araújo, proferida no Agravo em Recurso Especial n. 2.648.077/MS, que assevera, em síntese: “No recente julgamento do REsp n. 1.792.271/SP (relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJEN de 30/5/2025), a eg. Quarta Turma concluiu não ser possível adotar interpretação ampliativa do artigo. 50 do CC para responsabilizar terceiros que não têm vínculo jurídico com as sociedades atingidas, ainda que se verifique a ocorrência de confusão ou desvio patrimonial, devendo o credor prejudicado utilizar-se, nesses casos, dos institutos da fraude contra credores e da fraude à execução, a depender do caso…”

Concluo, repetindo que o mecanismo da desconsideração incidental da personalidade jurídica não pode ser concebido como remédio processual análogo à ação pauliana. Em caso de utilização equivocada, é certo que a decisão que declarar a ineficácia de negócios jurídicos no bojo do IDPJ desponta viciada, porque violadora das garantias do devido processo legal!

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