O ambiente jurídico-empresarial brasileiro tem passado por transformações relevantes, impulsionadas pela expansão do ecossistema de inovação e tecnologia. Nesse contexto, a promulgação da Lei Complementar nº 182/2021, conhecida como Marco Legal das Startups, representou um importante avanço voltado a fomentar o empreendedorismo e a simplificar o ambiente de negócios no país.
Entre as alterações introduzidas, uma em especial tem despertado intenso debate no âmbito do Direito Societário: a eventual possibilidade de distribuição desproporcional de dividendos em sociedades anônimas.
Até então, prevalecia entendimento consolidado de que apenas as sociedades limitadas poderiam realizar distribuições desproporcionais de lucros, nos termos do artigo 1.007 do Código Civil[1]. Já nas sociedades anônimas, a distribuição de dividendos deveria obedecer a igualdade de distribuição entre ações da mesma classe e espécie – ou seja, observada a proporção das ações detidas por cada acionista dentro da classe e espécie. Assim, a desproporção da distribuição de dividendos era viável apenas através da criação de ações preferenciais com dividendos mínimos, fixos ou diferenciados, na forma do artigo 17 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.)[2], resguardado que cada ação dentro da classe e espécie sempre deveria receber dividendos iguais às demais ações da mesma classe e espécie.
Entretanto, com a alteração do §4º do artigo 294 da Lei das S.A.[3], introduzida pelo Marco Legal das Startups, surgiu o questionamento sobre se a nova redação teria aberto espaço para a distribuição desproporcional de dividendos em sociedades anônimas de capital fechado com receita bruta anual de até R$ 78 milhões.
O Marco Legal das Startups e as alterações na Lei das S.A.
Ao introduzir o Marco Legal das Startups, o legislador buscou adequar a disciplina das sociedades anônimas de capital fechado à realidade de companhias de menor porte, simplificando regras que antes eram uniformes para sociedades de qualquer dimensão.
Nesse contexto, uma das modificações mais relevantes recaiu sobre o artigo 294, que trata das companhias fechadas com receita bruta anual de até R$ 78 milhões. O novo § 4º passou a vigorar com a seguinte redação:
“Na hipótese de omissão do estatuto quanto à distribuição de dividendos, estes serão estabelecidos livremente pela assembleia geral, hipótese em que não se aplicará o disposto no art. 202 desta Lei, desde que não seja prejudicado o direito dos acionistas preferenciais de receber os dividendos fixos ou mínimos a que tenham prioridade.” (grifo nosso)
A alteração trouxe à tona um ponto relevante de debate: a expressão “estabelecidos livremente pela assembleia geral” passou a ser interpretada por parte da doutrina e do mercado como uma possível flexibilização do regime tradicional de distribuição proporcional de dividendos. Ao atribuir à assembleia geral a competência para deliberar “livremente” sobre a matéria, o legislador teria ampliado a autonomia dos acionistas dessas companhias para definir critérios distintos de repartição dos resultados, inclusive sem observar rigorosamente a proporcionalidade da participação acionária na mesma classe e espécie de ações, criando nas sociedades anônimas a mesma possibilidade estabelecida para as sociedades limitadas pelo artigo 1.007 do Código Civil.
A partir dessa mudança, duas correntes de interpretação passaram a se formar no meio jurídico: uma sustentando que o novo dispositivo efetivamente permite a distribuição desproporcional de dividendos em companhias fechadas de menor porte, e outra defendendo que a regra de proporcionalidade entre ações e dividendos da mesma classe e espécie permanece inderrogável, mesmo após o Marco Legal das Startups.
A corrente favorável à distribuição desproporcional
Uma parcela relevante da doutrina e da prática empresarial, especialmente entre advogados e consultores que atuam no ecossistema de startups e do Direito Societário, sustenta que a nova redação do § 4º do artigo 294 da Lei das S.A. autoriza a distribuição desproporcional de dividendos em companhias fechadas de menor porte.
Para essa corrente, a intenção do legislador teria sido aproximar o regime das sociedades anônimas fechadas de menor porte ao das sociedades limitadas, conferindo-lhes maior flexibilidade e dinamismo – características essenciais em estruturas empresariais voltadas à inovação ou até mesmo sociedades com uma natureza mais pessoal, tal como ocorre muitas vezes com as sociedades limitadas.
Essa corrente defende que a expressão “estabelecidos livremente” deve ser interpretada em sentido amplo, permitindo que a assembleia geral, no exercício de sua competência, delibere livremente sobre a forma de distribuição dos lucros, inclusive de maneira desproporcional entre os acionistas titulares de ações da mesma classe e espécie.
Essa flexibilização seria especialmente relevante no contexto das startups e de sociedades com natureza pessoal (como, por exemplo, consultorias, assessorias de investimento, gestoras e afins), que frequentemente necessitam de mecanismos para remunerar de forma diferenciada sócios-fundadores, investidores e colaboradores-chave, cujas contribuições para o sucesso do negócio nem sempre se refletem na proporção de suas participações acionárias e podem variar de acordo com o resultado de sua atuação no âmbito da sociedade a cada exercícios social.
Além disso, essa corrente entende que a dispensa expressa da aplicação do artigo 202 da Lei das S.A. reforça a amplitude dessa liberdade conferida à assembleia geral. Isso porque, ao afastar a obrigatoriedade de observância do dividendo mínimo obrigatório, o dispositivo permitiria não apenas que a companhia opte por não distribuir dividendos em determinado exercício, mas também que, caso decida distribuir, o faça de forma desproporcional, conforme as necessidades financeiras e estratégicas da empresa.
A corrente de interpretação restritiva
Em contrapartida, uma corrente mais conservadora adota interpretação restritiva das alterações promovidas pelo Marco Legal das Startups. Para essa vertente, a nova redação do § 4º do artigo 294 da Lei das S.A. não autoriza a distribuição desproporcional de dividendos entre ações da mesma espécie e classe, limitando-se a conferir à assembleia geral maior liberdade para deliberar sobre a destinação do lucro, inclusive quanto à não distribuição do dividendo obrigatório, nos casos em que o estatuto social for omisso.
Segundo essa interpretação, a expressão “estabelecidos livremente” deve ser compreendida como a possibilidade de a assembleia definir a existência, o montante e o momento da distribuição dos dividendos, e não a forma de sua repartição entre os acionistas. A proporcionalidade à participação acionária da mesma classe e espécie permaneceria, portanto, como regra inderrogável, em respeito ao princípio da equidade entre os acionistas, um dos pilares estruturantes da Lei das S.A.
Essa corrente sustenta que a participação nos lucros constitui direito essencial do acionista e que admitir a distribuição desproporcional poderia comprometer a proteção dos minoritários, permitindo que controladores ou determinados acionistas recebessem valores superiores aos que lhes caberiam proporcionalmente.
A corrente intermediária
Entre as duas posições antagônicas, há, ainda, quem defenda uma interpretação intermediária do § 4º do artigo 294 da Lei das S.A. Essa corrente reconhece que o dispositivo abre margem para a distribuição desproporcional de dividendos mesmo entre ações da mesma classe e espécie, mas condiciona sua validade à anuência expressa dos acionistas que venham a ser prejudicados pela deliberação.
Segundo essa visão, a autonomia da assembleia geral deve ser exercida em consonância com o princípio da proteção dos acionistas minoritários, de modo que a deliberação que estabeleça tratamento desigual só seria legítima se acompanhada do consentimento dos acionistas que viessem a receber um valor menor do que a proporção de suas ações ou, ao menos, se adotados mecanismos compensatórios ou de transparência equivalentes.
Esse entendimento busca equilibrar a flexibilidade empresarial pretendida pelo Marco Legal das Startups com a segurança jurídica e a preservação da equidade entre os acionistas, evitando distorções econômicas e potenciais abusos de poder de controle. Assim, a distribuição desproporcional de dividendos poderia ser admitida como uma exceção pontual e consensual, e não como uma prerrogativa ampla da assembleia geral.
Na prática, essa corrente sugere que a deliberação seja expressamente registrada em ata, com declaração inequívoca de concordância dos acionistas afetados com o recebimento inferior ao seu percentual de participação, além de fundamentação clara quanto às razões de negócio que justificam a distribuição diferenciada – como retenção de talentos, reconhecimento de esforços ou recomposição de aportes.
Considerações finais
Diante da ausência de jurisprudência consolidada e da divergência de entendimentos doutrinários, recomenda-se cautela na adoção dessa prática pelas companhias fechadas de menor porte e, especialmente, que eventual aplicação do mecanismo de distribuição desproporcional seja expressa e pormenorizadamente estabelecido no estatuto social da companhia e, se houver, em seu acordo de acionistas.
Nesse contexto, é recomendável que eventual adoção da distribuição desproporcional seja precedida de análise jurídica minuciosa e acompanhada de robusta documentação societária. A prática deve estar expressamente prevista no estatuto social e formalmente deliberada em assembleia geral, de modo a conferir transparência e segurança jurídica às decisões dos acionistas.








